20 fevereiro 2023

Há palavras que nos beijam

Há palavras que nos beijam
como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
de imenso amor, de esperança louca.


Palavras nuas que beijas
quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
aos muros do teu desgosto.


De repente coloridas
entre palavras sem cor,
esperadas inesperadas
como a poesia ou o amor.


(O nome de quem se ama
letra a letra revelado
no mármore distraído
no papel abandonado)


Palavras que nos transportam
aonde a noite é mais forte,
ao silêncio dos amantes
abraçados contra a morte.


Alexandre O'Neill
in “No Reino da Dinamarca : obra poética 1951-1965”
Lisboa, Guimarães Editores, imp. 1974. p. 50

30 novembro 2022

europa

"Apontas para o rosto sarcástico do sol de Inverno

E disparas. Há tantos meses que não chove – reparaste?

É o próprio céu a desistir de ti. E mesmo assim tu disparas, só sabes disparar.

Estás enganada, Europa. Envelheceste mal e perdeste a humildade.

Não é contra o sarcasmo que disparas, não é contra o Inverno,

Nem sequer contra o insólito, contra o desespero.

Tu disparas contra a luz.

Podes atirar-nos tudo à cara, Europa: bombas, palavras, relatórios de contas.

Podes até atirar-nos à cara um deputado, uma cimeira.

Mas os teus filhos não querem gravatas. Os teus filhos querem paz.

Os teus filhos não querem que lhes dês a sopa. Os teus filhos querem trabalhar.

Há tantos meses que não chove – reparaste?

A terra está seca. Nem abraçados à terra conseguimos dormir.

Enquanto te escrevo, tu continuas a fazer contas, Europa.

Quem deve. Quem empresta. Quem paga.

Mas os teus filhos têm fome, têm sono. Os teus filhos têm medo do escuro.

Os teus filhos precisam que lhes cantes uma canção, que os vás adormecer.

Eu acreditei em ti e tu roubaste-me o futuro e o dos meus irmãos.

Se estamos calados, Europa, é apenas porque, contrários ao teu gesto,

Nós não queremos disparar.

Filipa Leal

in "Vem à Quinta-feira"

30 outubro 2022

Uma paixão simples



Uma paixão simples...

Dois anos.

Um espelho.

Uma Escritora como nós, mulheres anónimas.

Uma Prémio Nobel.

#annieernaux #umapaixaosimples

#nobelliteratura2022

25 agosto 2022

nada tão silencioso como o tempo no interior do corpo



"Nada tão silencioso como o tempo

no interior do corpo. Porque ele passa

com um rumor nas pedras que nos cobrem,

e pelo sonoro desalinho de algumas árvores

que são os nossos cabelos imaginários.

Até na íris dos olhos o tempo

faz estalar faíscas de luz breve.

Só no interior sem nome do nosso corpo

ou esfera húmida de algum astro

ignoto, numa órbita apartada,

o tempo caladamente persegue

o sangue que se esvai sem som.

Entre o princípio e o fim vem corroer

as vísceras, que ocultamos como a Terra.

Trilam os lábios nossos, à semelhança

das musicais manhãs dos pássaros.

Mesmo os ouvidos cantam até à noite

ouvindo o amor de cada dia.

A pele escorre pelo corpo, com o seu correr

de água, e as lágrimas da angústia

são estridentes quando buscam o eco.

Mas nós sentimos dentro do coração que somos

filhos dilectos do tempo e que, se hoje amamos,

foi depois de termos amado ontem.

O tempo é silencioso e enigmático

imerso no denso calor do ventre.

Guardado no silêncio mais espesso,

o tempo faz e desfaz a vida.”


Fiama Hasse Pais Brandão

in Cenas Vivas

24 maio 2022

Boca de Incêndio


Boca de incêndio

pronta a usar quando

o corpo e a cidade o permitirem.

Boca de incêndio 

disponível hoje

e sempre que as chamas a invocarem.

Boca de incêndio 

inútil por tantos

séculos de abundância de chuvas.

Boca de incêndio, 

trágica amiga

à espera do dia em que nos unas.

Carmen Zita Ferreira 

14 março 2022

#leremqualquerlugar 2022

Ler em qualquer lugar, Carmen Zita Ferreira, no canal PNL no YouTube: Aqui

#leremqualquerlugar

#semanadaleitura2022

#pnl2027

#alermais

24 fevereiro 2022

Europa

 A guerra, que aflige com os seus esquadrões o Mundo,

É o tipo perfeito do erro da filosofia.


A guerra, como tudo humano, quer alterar.

Mas a guerra, mais do que tudo, quer alterar e alterar muito

E alterar depressa.


Mas a guerra inflige a morte.

E a morte é o desprezo do Universo por nós.

Tendo por consequência a morte, a guerra prova que é falsa.

Sendo falsa, prova que é falso todo o querer-alterar.


Deixemos o universo exterior e os outros homens onde a Natureza os pôs.


Tudo é orgulho e inconsciência.

Tudo é querer mexer-se, fazer coisas, deixar rasto.

Para o coração e o comandante dos esquadrões

Regressa aos bocados o universo exterior.


A química directa da Natureza

Não deixa lugar vago para o pensamento.


A humanidade é uma revolta de escravos.

A humanidade é um governo usurpado pelo povo.

Existe porque usurpou, mas erra porque usurpar é não ter direito.


Deixai existir o mundo exterior e a humanidade natural!

Paz a todas as coisas pré-humanas, mesmo no homem,

Paz à essência inteiramente exterior do Universo!


Alberto Caeiro

20 janeiro 2022

preocupações de manada

 a zona de pausa 


tens de a ter, caso contrário, as paredes 

cercar-te-ão.

tens de desistir de tudo, deitar 

fora, deitar tudo fora. 

tens de olhar para o que estás a olhar 

ou pensar no que estás a pensar 

ou fazer o que estás a fazer 

ou 

a não fazer

sem considerar proveito 

pessoal 

sem aceitar orientação. 


as pessoas estão consumidas com 

o esforço,

escondem-se em hábitos 

comuns.

as suas preocupações são preocupações de 

manada.


poucos têm capacidade de olhar 

para um sapato velho durante 

dez minutos 

ou de pensar em coisas estranhas 

como: quem é que inventou 

a maçaneta? 

tornam-se desvivas

por serem incapazes de fazer 

uma pausa 

de se desarmarem

de se desdobrarem 

de desverem 

de desaprenderem 

de se exporem.


escuta o seu riso 

falso, depois 

vai-te 

embora. 


Charles Bukowski, OS CÃES LADRAM FACAS (Antologia Poética), selecção, organização e prefácio de Valério Romão, tradução de Rosalina Marshall, ed. Alfaguara


16 dezembro 2021

auto-retrato em fundo cinza/diamante

"Well people I've been here before

I know this room and I've walked this floor

You see I used to live alone before I knew ya

And I've seen your flag on the marble arch

But listen love, love is not some kind of victory march, no

It's a cold and it's a broken Hallelujah

Hallelujah...

There was a time you let me know

What's really going on below

But now you never show it to me, do you?

And I remember when I moved in you

And the holy dove she was moving too

And every single breath we drew was Hallelujah"


19 outubro 2021

nove anos sem ele

 


A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum
poeta por este senhor?» E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
- Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar? -
Manuel António Pina
in "Ainda não é o Fim nem o Princípio do Mundo. Calma é Apenas um Pouco Tarde"

02 outubro 2021

entre nós

Nada entre nós tem o nome da pressa.

Conhecemo-nos assim, devagar, o cuidado

traçou os seus próprios labirintos. Sobre a pele

é sempre a primeira vez que os gestos acontecem.

Porém,

se se abrir uma porta para o verão, vemos as mesmas coisas –

o que fica para além da planície e da falésia; a ilha,

um rebanho, um barco à espera de partir, uma palavra

que nunca escreveremos.

Entre nós

o tempo desenha-se assim, devagar.

Daríamos sempre pelo mais pequeno engano.

Maria do Rosário Pedreira

29 setembro 2021

a fenda

“De repente, deixo de ouvir a música e só o meu coração bate. Paro no meio do salão de baile. Um susto: não sei dançar. Parece que qualquer coisa deu de si. Sinto um espaço entre mim e o meu corpo. Como se o meu corpo se tivesse desligado de mim. Uma fenda entre mim e o meu corpo. Mas talvez nada se tenha fendido. Talvez tenha sido sempre assim e eu nunca tenha reparado.”

Dulce Maria Cardoso in "Rosas"

15 agosto 2021

tempo e silêncio neste quarto

"Nada tão silencioso como o tempo

no interior do corpo. Porque ele passa

com um rumor nas pedras que nos cobrem,

e pelo sonoro desalinho de algumas árvores

que são os nossos cabelos imaginários.

Até nas íris dos olhos o tempo

faz estalar faíscas de luz breve.


Só no interior sem nome do nosso corpo

ou esfera húmida de algum astro

ignoto, numa órbita apartada,

o tempo caladamente persegue

o sangue que se esvai sem som.

Entre o princípio e o fim vem corroer

as vísceras, que ocultamos como a Terra.


Trilam os lábios nossos, à semelhança

das musicais manhãs dos pássaros.

Mesmo os ouvidos cantam até à noite

ouvindo o amor de cada dia.

A pele escorre pelo corpo, com o seu correr

de água, e as lágrimas da angústia

são estridentes quando buscam o eco.


Mas não sentimos dentro do coração que somos

filhos dilectos do tempo e que, se hoje amamos,

foi depois de termos amado ontem.

O tempo é silencioso e enigmático

imerso no denso calor do ventre.

Guardado no silêncio mais espesso,

o tempo faz e desfaz a vida."

Fiama Pais Hasse Brandão

09 julho 2021

Biblioterapia - A leitura como terapia complementar - Carmen Zita Ferreira

 10 DE JULHO DE 2021 - 18H às 20H (Portugal Continental)

                                           14H às 16H (Brasil)



22 junho 2021

...

Que merda a nostalgia – nasce na respiração
E fica demoradamente. A sombra
Por dentro dos olhos, a baba, o sono,
O excesso de sensibilidade nos dentes
E a pele susceptível à roupa. Tão próxima
Que queima e gela em simultâneo, dor
Tão pequenina que nem acciona
As reacções fisiológicas de defesa.
Os detritos da festa acumulam-se,
A memória ateia distantes fogachos
De felicidades impossíveis, gomos
De saudade, uma pena sem coragem
Ou ternura. Que merda a nostalgia,
Horizonte falsificado por linhas
Rectas de solilóquio pensado,
Luz que não vem ou vem em excesso,
Carga de ombro inesperada no meio
Do campo deserto. Que braços se abrem
Para deter a espuma amarelada
Com que a maré polui o areal?
 
Rui Almeida



17 maio 2021

era um pássaro alto

 

Era um pássaro alto como um mapa
e que devorava o azul
como nós devoramos o nosso amor.

Era a sombra de uma mão sozinha
num espaço impossivelmente vasto
perdido na sua própria extensão.
Era a chegada de uma muito longa viagem
diante de uma porta de sal
dentro de um pequeno diamante.
Era um arranha-céus
regressado do fundo do mar.
Era um mar em forma de serpente
dentro da sombra de um lírio.
Era a areia e o vento
como escravos
atados por dentro ao azul do luar.

                                        Artur do Cruzeiro Seixas

02 abril 2021

Entrevista na ABCPortugal Rádio - 02.04.2021

No Dia Internacional do Livro Infantil tive o prazer de ser entrevistada pela doce Paula Melo​, para a ABC Portugal Rádio.
Falámos de livros, de passado, de afetos, de covid-19 e de futuro. Espero que gostem tanto de ouvir como eu gostei de estar com a Paula. Obrigada!